Thursday

sob o monumento

quando ela senta no meu colo me vem à cabeça os possíveis contornos dos rostos de cada paspalho que já passou pela sua vida. é um trabalho divertido personificar esse tipo de sujeito insolente e medroso que já tentou mergulhar nesses braços. automaticamente me sinto melhor que eles, o que é óbvio. mas o que me faz melhor não é nada além da minha vontade de construção. da permissão que concedo a mim mesmo de me envolver com o que parece maior que as minhas próprias forças e de dar a essa mulher um pouco mais do mundo. que eu sou pelo menos um horizonte mais amplo do que seus pais medrosos e avarentos, seus tios materialistas, suas tias frígidas e seus amigos infanto-bichas-camufladas. aqui, sobre os contornos do meu corpo, ela tem contato com uma verdade. ela tem contato com algo que pode manejar livremente, como o seu destino tem que ser. ao beijar-me ela sente o gosto que preenche as expectativas de doçura e da firmeza do seu paladar. meu rosto têm o acalento que ela precisou quando era menina e que pode levar pra qualquer lugar, até àquele peito dolorido quando ela precisa. em mim ela dorme porque eu a zelo. sou seu protetor contra um mundo que acha que sabe das coisas e que a pode machucar por isso.
aqui, querida, não chore.
deixe-me beijá-la e engolir essas lágrimas, me deixa comer seu estômago ansioso, enfiar minhas mãos na sua garganta sangrenta e limpá-la como um operário dedicado faz a um esgoto assassino. aqui, querida, olhe pra mim: tudo é uma lente convexa do que queremos que seja. olhe primeiro pra mim, depois pro resto. eu vou te aquecer.
ela se deita sobre a minha cabeça e eu penso em como sou grato por aqueles bastardos terem beliscado a sua felicidade. obrigado, imbecis! obrigado por deixarem o pedaço grande deste coração intacto. se não fosse pelo potencial que tinham, cabeças-de-bagre, provavelmente ela teria iluminado um de vocês e os guardado sob algum segredo eterno e indecifrável. teria transformado ao menos um em alguém melhor e o teria agarrado pra sempre por pura clemência, pura compaixão e paciência. se não fosse pelo excesso de idiotia dessa legião, ela estaria aprovada aos olhos de deus, de buda, de alá, de hitler, platão e aristóteles e descartes e dos pais e dos vizinhos e dos descrentes. vocês vão morrer como merecem: sem o traço de iluminação desse anjo de luz aqui, no meu colo. eu sou grato a vocês e só a vocês. porque a vida ainda não me julga merecedor de um presente assim. mas vocês me deram essa chance. sou eternamente grato a vocês e não lhes dou mais que o meu desprezo em troca.

obrigado

quando meu estômago está podre, ou acabo de vomitar, ou quando sinto dor de cabeça, ou quando tudo vem junto, minha capacidade de organizar as idéias fica umas dez vezes mais aguçada que o normal. minha criatividade, minha receptividade, minha calma pra analisar e o processamento dessas informações fica como eu queria que fossem o tempo todo.
acredito no poder do mal-estar. acho que somos fadados a ter o rabo estourado enquanto sentamos confortavelmente em algum lugar. temos que nadar num rio de cobras para refrescar nossa pele.
aceitar que tudo é necessário é o princípio da responsabilidade. é reconhecer, ao mesmo tempo e progressivamente, seus poderes e limitações.
não porque exista um lado ruim e um lado bom nas coisas, mas porque elas em si se entrelaçam na miséria de existirem e serem só coisas. é a condição humana que vê o que é bom e o que não é. e vemos com olhos humanos, falhos, respiramos com pulmões de engenheiros de chaminés tóxicas, apalpamos com mãos leprosas e lambemos o que deus cagou em cima porque é o melhor que temos. e isso não é ruim porquê simplemente não conhecemos nada melhor.

por isso que um verdadeiro homem é aquele que acorda todos os dias, limpa a remela dos olhos e diz: "nada mudou. sou o mesmo e hoje serei forte como amanhã, mais do que ontém". chore e chorará sozinho. sim, sozinho, porque todo mundo tem mais o que fazer, amigo. todo mundo tem que achar um buraco onde enfiar dinheiro, todo mundo tem que tirar o arroz do fogo porque, senão, as coisas desmontam. e você não vai agüentar o tranco. nenhum par de pernas feitas só de infância suporta o peso de um mundo bêbado. ninguém sequer consegue embriagá-lo tanto assim. não há absinto no mundo para o próprio mundo. e sabe porquê? porque tudo o que é equivalente é igualmente irreal. porque a noção da totalidade é imperfeição. porque é assim que tem que ser. e vai. porque se as coisas fossem perfeitas, como nos meus e nos seus sonhos, eles não seriam sonhos e nós, nós.